Se você está aqui, é justamente para presenciar o encerramento embasbacante deste Bruxas do 31 de outubro, em sua proposta
Não foi fácil, nada fácil. Estávamos chorando,
que lá vem história: Escolhemos 3 músicas cada uma, músicas que nos inspiravam, para que uma fosse sorteada (a minha música saiu da minha lista e a da Shana saiu da dela. Estou explicando isso porque eu mesma levei 5 minutos pra entender quando estávamos combinando) - afinal, trilha sonora sempre dá um empurrãozinho na hora de escrever, non?
Depois, ambas fizemos listas com 10 palavras cada e juntamos - ficou um listão de 20 palavras. Sorteamos 5 para cada uma e essas palavras dão o tom da nossa história. E, por fim, eu escolhi uma imagem para a Shana se basear e a Shana escolheu uma imagem pra mim.
bacana e divertido. Se vocês me permitem:
, não é à toa que elas rimam. Eu e Shana passamos um tempo chorando nossa escolha de desafio e, certamente, este foi o momento mais tenebroso e assustador de todo o Bruxas, nada supera. Como a atribulação escalonou exponencialmente nessa última semana, as coisas total saíram do controle com o meu conto. Some ansiedade, síndrome do impostor e todos esses probleminhas à coisa. Mas eu fiquei contente de ter feito isso anyway.
Então deu uma atrasadona no rolê, sabe... Mas não tem problema! O importante é que o conto está aqui!
As palavras sorteadas estão sublinhadas. As palavras em itálico são enfáticas, é assim que eu aprendi, gente.
que eu posto aqui no Kakumei - porque todo mundo sabe que eu sempre quis ser escritora, mas ninguém nunca leu nada do que eu escrevi até hoje. Sigam-me
, essa propriedade da sua família, Lu.
Ela sorriu e deu de ombros, confortavelmente recostada contra um braço da poltrona, os pés descalços sobre o outro. Ele olhava ao redor para o quarto imenso com decoração carregada que acrescentava todo um ar antiquado ao lugar - na verdade, achava tudo muito bacana, dava um charme especial à propriedade secular da família de sua
. Ele gostava dali, mas o lugar era cheio de sombras em todos os cantos e coisas que habitavam seus olhos e ouvidos pareciam fortes ali, ao mesmo tempo em que Lucine estava longe o bastante para que ele conseguisse se sentir inseguro e assombrado por si mesmo.
A viagem de carro até ali durara muitas horas, o congestionamento nas vias para o interior ou para o litoral estava amaldiçoado – ambos consideraram até dar meia volta. Já era noite alta quando eles avistaram a Quinta da Lua.
-Eu acredito que sim, eu não me lembro – Lucine comentou como quem comenta o preço do pão, esticando-se para que agora os joelhos ficassem sobre o braço da poltrona, os pés pairando – Quando eu perdi a visão, eu ainda era criança e não guardei detalhes de como era por aqui, sabe, esteticamente. Mas eu conheço os cômodos, os lugares, de quando a gente vinha nas férias, então não precisa ficar todo pilhado, Bê. Eu sei onde eu piso na muy nobre quinta dos Lopes da Cruz. Deu trabalho, mas eu sei me virar aqui agora.
-Isso eu vi - comentou, sentando-se na otomana que fazia par com a poltrona enquanto recapitulava os eventos desde a noite anterior, quando chegaram.
Sequer precisou buzinar e já havia gente ao portão antigo: sua sogra e um dos quatro tios presentes, que reconheceu-os na mesma hora. O homem, que Bernardo chamava de Tio #1 em sua cabeça, estava rindo e bradando, mas a mãe da mulher não havia dito nada, e ela mesmo assim soubera de sua presença. Então ele conheceu a Tia #2 e os Tios #3 e #4. Ainda havia o Tio e as Tias #5, #6 e #7, mas eles não haviam chegado até o momento ou não viriam. Sua mãe tinha um irmão e uma irmã e os três quase se assassinaram por causa da partilha quando seus avós morreram... Ele não sabia como sete irmãos, e seus respectivos cônjuges e prole (só quatro irmãos já tinham um total de rebentos presente que era maior que sua família estendida inteira) conseguissem viver tão pacificamente sem rachar a velha Quinta em tantos pedaços quanto fosse possível.
Nem se deu ao trabalho de numerar os primos e primas, mas lembrava alguns nomes: Sheila era a que falava como vlogueira 24/7, Guilherme parecia que tomava banho de Old Spice, Patti cantava e cantava bem para uma menina de 10 anos, Elias era o primo mais velho e já tinha mais uns 2 priminhos que eram de "fabricação própria", Nicole e Nathan eram gêmeos e ele não sabia bem de quem que eles eram filhos, só que eles tinham uns 20 anos já e ainda brigavam como se tivessem 12... E a lista ia embora.
Durante o dia, a família para a qual pretendia entrar se comportava com tal sintonia que ele ficou bastante preocupado de ser um pouco desajeitado demais perto deles. Por alguma razão, o som de coisas quebrando e de cachorros ganindo em algum lugar era quase uma constante, mas ele atribuiu isso ao número relativamente alto de crianças e adolescentes super-enérgicos que ficavam para lá e para cá o tempo todo - em grupos separados, porque as duas espécies não se comunicavam, mesmo causando estragos semelhantes. Ele só tinha pena mesmo dos cachorros.
Se as crianças eram barulhentas, todos os adultos eram estranhamente silenciosos. Lu sempre fora uma presença discreta ao se mover, que ia e vinha com agilidade e desenvoltura que ele achava incríveis, e ela sempre atribuía tudo a confiança e desconfiança - em si e no que ela não pudesse comprovar, respectivamente.
-Então você guia meus passos – Bernardo falou suavemente, inclinando-se para a noiva e segurando suas mãos. Ela virou o rosto em sua direção, sorrindo, e eles se beijaram – Principalmente nesse jantar de noivado com a sua família. Já que você conhece todos os passos, não me deixe pisar em falso, ok?
-Não se preocupe, vou ficar de olho para que nada de mal te aconteça nem no jantar nem durante o feriado, tá bom?
-Engraçadinha – ralhou carinhosamente, prestes a dizer mais algum gracejo quando se calou.
Lucine estranhou o silêncio repentino e a forma como ele começou a recolher as mãos para si com pressa. Ela interrompeu-o, retendo seus pulsos entre os dedos com determinação cuidadosa, e girou o corpo até ficarem frente a frente, sua respiração subitamente forte.
-O que foi, Bê?
Ela parecia tão alerta, tão ciente do lugar onde estavam. Lu fazia essas coisas com alguma frequência, mas nunca tinha levado a nada extraordinário - segundo ela, eram só reações ansiosas, bobagem.
Bobagem.
-Você ficou esquisito,
assustado - disse com cuidado - Por quê? Você está... Vendo alguma coisa ou...?
As luzes no terraço estavam apagadas e a luz das lâmpadas elétricas no quarto piscaram, como faziam de quando em quando, parecendo encolher ante as
sombras que avançavam com o cair da noite. A iluminação amarelada parecia sufocá-lo e tornava tudo ali estranho, como se a mulher que ele amava há dois anos fosse algo além do que ele conhecia, o vale sob as sobrancelhas muito acentuado e o nariz subitamente mais pronunciado, como uma fera.
Por outro lado, Bernardo não tinha a menor intenção de afastar-se. Algo em sua presença havia se expandido, dando-lhe ares heroicos, quase míticos. Como se ela pudesse salvar o mundo sem arruinar-se por qualquer falha trágica, como se ser ou não ser fosse uma angústia muito mundana para sua classe e ela pudesse vencer sem dor, sem perdas. Ele queria ficar sob sua luz e suas
sombras.
-E-eu achei q-que-e tinha visto alguma coi-sa - balbuciou, tentando manter a voz estável, tanto para não entregar a ânsia repentina quanto para disfarçar o assombro com Lucine - Mas não... Não foi nada.
Sentiu as mãos dela deslizarem por seus braços de forma confortante. aproximando-se. A pulsação dele continuava acelerada e Lucine podia ouvi-la tão claramente que era quase como se fosse a sua própria.
-Seja lá o que for que você vir aqui, você pode me falar. Eu garanto que não há
nada sob este teto que possa te machucar.
A firmeza daquelas palavras tornava-as algo além de uma tentativa comum de conforto. Eram uma garantia e Bernardo confiaria em qualquer coisa que sua noiva lhe garantisse.
-Você não acha isso tudo estranho? Quero dizer, eu...
-Bê, minha tolerância ao que parece estranho está
muito além do que você pode imaginar. Eu não acho que você seja louco ou que o que quer que seja que você viu é tolice. E, bom, você meio que não quer discutir estranheza comigo - ela sorriu de forma tensa - Nós aqui somos muito mais... Hm...
Absurdos do que você imagina.
-Eu só achei - começou, quase completamente envolvido pelo conforto e segurança que vinham de Lucine - Achei que tivesse visto as sombras... Tremulando, como se alguém estivesse aqui.
Ela aproximou-se mais e permaneceu silenciosa, contemplativa, como se vasculhasse o quarto de alguma forma que Bernardo, em sua vivência, não conseguiria. Seus ombros eram tão tensos quanto os dele e havia algo de temeroso em sua postura, na forma como segurava suas mãos.
O rapaz notou que a orelha esquerda da noiva mexeu-se, algum tipo de contração involuntária sutil mas perceptível.
-Não sabia que você podia mexer a orelha - ele comentou, distraidamente, quase divertido - É preciso ter um gene específico pra fazer isso, sabia?
Lucine voltou o rosto em sua direção, ainda absorta em suas maquinações, até que as palavras fizeram sentido, atingindo-a aos poucos, como se ecos em uma caverna, e ela sorriu.
-Acho que ouvi isso em algum lugar uma vez. Não é minha melhor habilidade - zombou, antes de ficar novamente séria e mudar de assunto - Você está seguro, Bê, te juro. Não se preocupe.
Lu plantou um beijo rápido em seus lábios e afastou-se, naquele passo acelerado de sempre, rumo à porta. Antes de sair, porém, disse uma última coisa:
-Espero que você esteja bem preparado pra esquisitice, porque o
banquete de noivado - riu, já constrangida com a papagaiada que os esperava - Vai ser regado a absurdos. Mas você não precisa aceitar nenhum deles, sim? Eu te apoio se você quiser fugir daqui, sozinho mesmo, pra nunca mais voltar - ela riu novamente, muito incomodada, de forma que o riso soou quase um tosse - Bom, se você precisar de mim, eu estou 3 quartos à sua esquerda.
-Lu - Bernardo chamou-a, ao que ela abriu a porta que mal havia fechado e apareceu para ele à soleira - Eu não fugiria de você por nenhum absurdo no mundo.
O sorriso rápido de Lucine foi tão ou mais incomodado que sua risada, como se ela não acreditasse naquilo. Não, ela definitivamente não punha fé naquelas palavras.
Mas Bernardo sabia exatamente o que estava dizendo. Mesmo que aquele casarão velho estivesse cheio de fantasmas sob sua pele dura, ele não fugiria de Lucine. Mesmo que ela tivesse plantado cada um daqueles infortúnios, mesmo que cada fantasma ali fosse obra sua, ele ainda ficaria ali. Com ela, por ela.
Bê trouxe o pulso para mais perto do rosto e checou as horas. Tinha tempo até o jantar de noivado e sentia-se muito drenado e arisco para sair dali e socializar. Sentou-se na poltrona onde a noiva estava antes e ali ficou, a testa encostada nos joelhos, evitando olhar ao redor e vasculhar o lugar em busca de coisas que não queria descobrir.
Três quartos adiante, Lucine afundou-se entre os travesseiros do quarto que conhecera a vida toda. Havia tanta aflição em si que sentia como se pudesse explodir - e ela não queria isso.
Chutou os sapatos para longe e deixou-se estar, esparramada sobre a colcha, os olhos cerrados como se aquilo fosse impedi-la de pensar em tantos desdobramentos, em tantas coisas que poderiam sair ao controle e dar errado.
O problema não residia no jantar de noivado, mas no que aquilo representava. Você não pode começar um casamento com segredos - e ela
sabia.
Colocou os braços sobre a cabeça, como que para proteger-se de si mesma e de tantos futuros possíveis. Adormeceu, como sabia que aconteceria.
***
Havia um barulho lá, no mundo exterior, mas Bernardo não conseguia acordar para descobrir o que era. Não percebera que tinha cochilado, estava sufocando.
Havia muitos uivos e ganidos, a casa rangia e seus fantasmas gemiam. Ele não conseguia se mexer, estava sem controle de si mesmo, mas dolorosamente consciente de que dormira na poltrona de um dos quartos da Quinta da Lua.
A aflição crescia. Aquela cacofonia era seu sonho ou vinha do mundo exterior?
Quase que via a luz fraca por detrás das pálpebras, como a chama de uma
vela muito distante.
Precisava encontrar Lucine, precisava despertar e tirá-los dali. Ele precisava achá-la e eles precisavam ir embora, porque nada daquilo era bom sinal.
Os fantasmas da casa gemiam cada vez mais alto e encobriam cada vez mais a luz que Bernardo sentia vir do mundo real, fora de seus sonhos, afundando-o em seu inconsciente.
Despertou esbaforido, o coração martelando contra as costelas como que a ponto de fugir. Não sentiria-se tão alarmado e vulnerável se lhe tivessem despertado aos gritos e pontapés do sono mais profundo! Mal readquirira o domínio sobre si e já desejava fugir.
Levantou aos tropeços, caindo sobre os braços após enroscar-se no suporte para pés adiante. Tentou erguer-se com mais cautela, a respiração difícil, como se seus pulmões estivessem parcialmente fechados.
Derrapou e escorregou até a porta, mas algo fê-lo parar antes que a escancarasse e se jogasse para o corredor em um espetáculo lamentável de falta de coordenação e excesso de desespero.
Ele esperava ouvir tiros, mas não. Esperava por gritos ou qualquer som conhecido que indicasse algo. Mas a confusão lá fora não apontava para nada... Nada familiar. O que o esperava lá fora?
Ele não sabia.
Segurava a maçaneta com as duas mãos, sem forças ou convicção para girá-la. Lucine estava lá fora, precisava fazer algo, completamente absorvido pela ideia de que ela precisava de sua proteção naquele momento. Todavia, a porta continuava trancada e suas mãos, imóveis.
Perdeu-se em uma névoa de não-pensamento, como se não habitasse mais o próprio corpo, e foi trazido de volta somente quando percebeu que a maçaneta girava entre seus dedos, com inegável tenacidade, quase violência. A consciência atingiu-o com o impacto de quem despenca de uma árvore. O vazio de compreensão encheu-se de horror no ato.
Suas mãos ainda estavam petrificadas e a maçaneta girava no sentido contrário.
O choro ficou na garganta enquanto a porta abria num rompante para revelar Lucine, ofegante e temerosa, parada à soleira. Sua postura era agressiva, curvada, como se fosse saltar sobre ele e estraçalhá-lo.
Bê havia caído de bunda no chão e jamais estivera tão apavorado antes.
-Bernardo?
A voz de sua noiva era um grunhido baixo, e o significado do que dizia ele mais leu em seus lábios que escutou.
-Ainda bem, nossa, ainda bem - sussurrou, a voz trêmula e a fala embolada - Eu estava tão preocupado!
Ela aproximou-se rapidamente, passos muito rápidos e precisos, até ficar diante dele. Seu semblante perturbou-se ao ouvir sobre sua preocupação, como se aquilo fosse um sentimento por demais estranho para se ter em relação a ela. Seus lábios se partiram para perguntar algo, mas não questionou coisa alguma.
-Ah, claro - silvou, agachando-se diante dele, suas mãos procurando seus ombros e depois, subindo pelo pescoço em busca de seu rosto - Eu te disse, Bê, conheço esta Quinta palmo por palmo, sem vacilar. Não está machucado
-Não, não estou - respondeu, sem nem perceber que ela não perguntara - Vamos sair daqui, Lu, alguma coisa está errada, eu não sei o que é e eu não posso fazer nada pra te proteger.
A forma como ela permanecia agachada, os calcanhares sequer tocando o chão e os ombros arqueados de forma perigosamente harmoniosa, acentuava a ilusão de fera em Lucine. Sua cabeça pendia, alerta e como que pronta para responder a qualquer ação externa.
Ainda assim, a gentileza com que suas mãos liam seu rosto, a firmeza comum de suas palavras e a naturalidade de sua presença para Bernardo eram quase tranquilizadoras.
Para o rapaz, o mundo havia fendido-se em dois e tudo acontecia ao mesmo tempo nesses dois mundos que se opunham: Uma Lucine feroz, pronta para atacar fatalmente quem se lhe impusesse naquele momento; Uma Lucine familiar, que ele precisava proteger, mesmo que ela não lhe tivesse pedido nada daquilo.
-Eu preciso te tirar daqui, Lu! Rápido! Agora - sua voz era baixa e urgente, enquanto os choros fantasmagóricos enchiam sua cabeça, a única que conseguia decifrá-los.
Ela ajudou-o a se erguer, seu aperto firme ao redor de seus braços. Havia um sinal de angústia em sua expressão e Bernardo considerou aquilo normal, ela estava com medo certamente.
-Pelo contrário, meu amor. Eu que preciso te tirar daqui agora - ela respondeu, um silvo amargo, ferido, tomando sua mão entre as suas - Perdão, Bê.
Ela girou e começou a guiá-lo para fora do quarto pela mão, passos atrás dela. Dali, ele via o quão rígido estava seu pescoço, que só se movia de forma calculada e cuidadosa, enquanto que a postura de sua noiva continuava arqueada, cada vez mais arqueada, e ele tinha a impressão de que seu equilíbrio estava cada vez mais inabalável.
Limpou a garganta de forma ineficaz, porque continuou sentindo o pigarro ali, e perguntou, a um fio de voz:
-Pelo quê? Perdão pelo quê?
-Pelas coisas que eu nunca te disse, pelas coisas que eu deveria ter te contado... Por ter te trazido aqui. Eu sinto muito pelas coisas que você vai ver - respondeu, sem se virar, seguindo para o corredor.
Sentiu o estômago gelar e sua mão vacilou entre os dedos dela, fazendo com que ela contraísse o aperto para impedi-lo, mas aquilo foi um reflexo que Lucine barrou, deixando-o recolher a mão para junto do próprio corpo, como um animal encurralado.
Ela não se virou ao lhe pedir que confiasse nela mais uma vez, que não saísse de perto. Por favor...
-O que você fez, Lucine? O que está acontecendo?
Bernardo ouvia sua própria voz ficar cada vez mais débil e trêmula, ao passo que a voz de Lucine assemelhava-se cada vez mais a um uivo.
Ela continuou seguindo pelo corredor, cautelosa.
-Por favor, Bernardo - pediu uma última vez, antes de atravessar o batente para o corredor escuro e quase silencioso.
A jovem soltou um suspiro trêmulo quando Bernando segurou seu ombro cuidadosamente, para avisá-la de sua presença. As coisas estavam prestes a piorar.
Seguiram para a sala de jantar como se tudo o mais ali fosse um sonho inquieto. Ambos sabiam que a quinta parecia mergulhada em silêncio, mas aquilo não se aplicava aos dois. Bernardo prestava cada vez mais atenção ao que gritavam os fantasmas da casa, e Lucine estava muito compenetrada aos murmúrios dos vivos.
Ele tentava acompanhá-la pela casa escura, tropeçava quase a cada passo, o que levou a mulher a envolvê-lo com um braço pelo resto do caminho até a sala de jantar.
Antes que alcançassem a porta, Lucine soltou uma exclamação baixa, como um ganido de dor. Permaneceu petrificada por apenas um breve momento antes que seguissem. Os espectros exaltaram-se em sua cacofonia, mas o jovem não entendeu o porquê.
Até adentrarem o cômodo. Bernardo tampou a própria boca, os olhos tão arregalados que pareciam prestes a saltar das órbitas. O lamento choroso de sua noiva sobrepôs-se ao choro fantasmagórico da casa em seus ouvidos.
Havia corpos nus pelo chão, caídos sobre a mesa e as cadeiras, umas tombadas, outras não ; a maioria, em pedaços. Ele reconheceu a família da mulher através da luz pálida que entrava pelas janelas abertas. Sheila estava debruçada sobre a mesa, muito perto do casal, tinha uma flecha num dos olhos, a taça em sua mão havia rolado pelo tapete sem se partir, derramando vinho sobre tantas outras manchas ainda avermelhadas; Guilherme jazia em um dos cantos, a cabeça pendendo sobre o peito, como que a mirar o ventre rasgado; um dos gêmeos estava um sobre um dos tios, ao lado do corpo encolhido de Patti, a boca aberta em horror e silêncio eternos.
Bernardo espantou-se ainda mais com a condição em que foram deixados, a maioria estava coberta de sangue de uma forma que dava a entender que haviam sido esfolados. Aquilo, somado ao crescendo dos lamentos em seus ouvidos, fez com que seu estômago revirasse, obrigando-o a buscar apoio na parede mais próxima. Lucine permaneceu calada e imóvel, apesar do afastamento súbito do noivo, o semblante escondido em
sombras.
Não tinha sobrado mais nada para colocar para fora, mas suas entranhas continuavam se contorcendo, e Bernardo não pôde responder quando ouviu a voz da noiva, estranhamente alta e muito mais aguda que o normal:
-Bê, onde você está? Bê, o que está acontecendo? Onde você está?
O jovem viu quando uma sombra projetou-se sobre si, diante da parede. Viu o vulto pelo canto dos olhos e endireitou-se com muita cautela. Lucine ainda gritava.
Era uma mulher com uma besta nas mãos, meio repousada na curva de seu antebraço, meio apontada para ele. Seus olhos correram a sala de jantar e havia outras pessoas ali, pessoas que ele nunca havia visto.
Pessoas armadas.
-Chequem o andar de cima - a mulher comandou. Pela primeira vez, Bernardo ouviu passos e movimentação. Ouviu alguém chamá-la de Argenta, mas poderia ser sua mente.
-P-p-por fa-av-or - balbuciou, abaixando a cabeça para não olhar diretamente nos rostos daquelas pessoas - Deixe que eu e a minha noiva... Por favor, ela é
cega, eu não vi nada, eu juro - disparou, tentando obter qualquer coisa dela. Qualquer piedade. Pelo menos para Lucine.
Argenta, ou quem fosse, chegou a abrir a boca para falar, mas a voz conhecida ergueu-se primeiro:
-BERNARDO - exclamou, de uma forma que ele nunca havia ouvido. Qualquer coisa estava ainda mais errada ali do que só aquilo, pensou, ouvindo a voz da noiva ecoar pelo lugar - O que está acontecendo? Quem está aí?
Aquelas pessoas rondavam Lucine de longe, um deles mexendo-se diante dela, provavelmente para comprovar que a moça era cega.
-Está tudo bem, Lu - Bernardo disse, forçando a voz a sair mais forte e confiante, enquanto dava um passo em sua direção.
-Fica quieto aí - Argenta não estava fazendo uma ameaça ao apontar a besta armada para o rapaz. Aquilo era um aviso, e ele sabia - O que é você? Não se parece nada com eles.
-E-eu não sei o que está acontecendo - respondeu, a voz a um fio de sumir - Eu só quero tirar a minha noiva daqui, por favor... Por favor...
-Por que alguém como você estaria com um monte de bestas? Você não se parece com nada, só com o jantar - ela ironizou, genuinamente divertida.
-Eu não estou entendendo - precisava respirar fundo a cada palavra, a garganta fechando-se, o suor escorrendo - Eles são pessoas... Eram... Era... O que vocês querem? Por que fizeram isso?
-Ele realmente não sabe - alguém zombou.
-Ou é isso que quer pensemos - Argenta pontuou, acuando-o ainda mais para o canto onde Guilherme estava - Essas desgraças procriam entre si... Ele não pode ser
só humano.
Sua cabeça girava e, logo mais, ele sabia que suas pernas já não o suportariam mais. Queria falar qualquer coisa para Lucine, qualquer coisa mentirosa e piedosa, para que ela não precisasse morrer em tamanho desespero. Bernardo estava certo de que eles iriam assassiná-los também.
Lucine continuava parada diante do portal por onde haviam entrada. Sua voz continuava subindo diante da ausência de resposta, sem saber ou ligar para o perigo. Seu noivo estava à beira das lágrimas, em desespero. Ele nunca a havia visto assim, mas sabia que, se ela pudesse ver
aquilo... Ah, se ela pudesse... Em seu lugar, ele também rugiria.
Foi tudo muito rápido. Argenta deu um sinal para alguém e Bernardo observou, em horror, quando um dos assassinos adiantou-se para sua noiva com o machado erguido sobre a cabeça.
Ousou gritar e avançar, esbarrando na figura sólida de Argenta, que o teria matado, se também não tivesse se virado para ver a imensa criatura que se jogara sobre Lucine na hora H, levando tanto a moça quanto seu pretenso executor para o chão.
Sua silhueta peluda apresentava tuchos visivelmente emplastrados de sangue e outras coisas que Bernardo sequer saberia dizer o que eram. O impacto com que pulou fez com que, em sua queda, batesse contra a mesa e empurrasse-a para frente.
O rapaz deixou escapar outra exclamação, obrigando Argenta a virar-se e colocá-lo na mira de sua flecha.
-O que é isso? O que... É isso?
A mulher encarou-o com desdém, quase com alguma pena. O pobre havia perdido a coerência diante de um lobisomem. Ele não sabia de nada mesmo.
Eu não quero morrer, meu Deus, eu não quero morrer aqui, assim! Eu não quero me juntar aos fantasmas, por favor...
Os outros caçadores moveram-se para checar o cadáver da loba, que não fora sem antes levar mais duas pessoas, uma vez que o colega de profissão tinha o pescoço torto e o rosto rasgado, e a garota jazia imóvel sob o corpanzil castanho.
-A alpha já foi. O que falta agora - murmurava Argenta, mais para si que para qualquer um, quando o barulho recomeçou.
Havia barulho no segundo andar, mas também havia o som de algo duro se rachando e partindo, vez atrás da outra, por sólidos dois minutos. Havia um grito que encheu o ar, junto de outras súplicas no andar superior. Os fantasmas também gritavam; Bernardo ouvia Lucine em agonia.
Foi erguido bruscamente para ficar entre Argenta e os três lobos que haviam adentrado a sala, com seus troncos e membros superiores muito próximos aos de humanos, mas os membros inferiores entregavam algo mais perto dos lobos reais - se é aquilo poderia ser chamado de "não-real". Sua postura era curvada e parecia inabalável, mesmo quando um deles tinha um corte que rasgara a pele de seu peito e vertia sangue.
Esse foi o primeiro a pular contra os caçadores remanescentes, um ato que parecia deliberadamente suicida, já que eles ainda estava em menor número, mesmo que por pouco. Aparentemente. Bernardo não conseguia mais divisar o que era real ali ou não.
Mas Bernardo soube que o lobo castanho que ergueu-se do chão era real. Ele achou impressionante que aquela criatura ainda lutasse, mesmo que seu pelo parecesse muito menos castigado. Mesmo quando seu corpo não exibia nenhuma sinal de dano.
E Bernardo era incapaz de não olhar a forma mortal e imperiosa com que ele se movia, o rosnado doloroso que enchia todo o cômodo, o único rosnado que ouvia ali. E os uivos descontrolados de vitória a cada humano que ia ao chão para sempre.
Estava completamente vidrado, por choque ou por qual motivo fosse. Os dois lobos restantes encaravam, os olhos brilhando escuros dentro das caveiras, enquanto que o lobo castanho jamais encarava - suas orelhas mexiam-se com rapidez ímpar e ele movia-se como que...
Cego.
-Lucine - soprou, o tom indecifrável até para ele mesmo.
E o lobo castanho ergueu sua cabeçorra na direção de Argenta, mas principalmente de Bernardo, que fechou seus olhos com força. Ia morrer mesmo, pensava.
Sentiu o sangue gotejar pela cabeça, suas pernas cederam e o piso atingiu seu rosto com um impacto doloroso, mas mudo. Abriu um pouco os olhos, balbuciando várias coisas que ouvia em sua mente, a tempo de enxergar o focinho preto, a pelagem castanha e os olhos que não o encaravam, mas que o conheciam.
Ergueu um braço e teve a sensação de pelo grudando em sua mão, de sangue e fios, ou o que fosse. Seus dedos ainda estavam suavemente fechados contra o pelo castanho quando sua consciência se esvaiu.
****
Acordou no quarto que lhe deram quando chegou à Quinta da Lua. Olhou ao redor e o sol do amanhecer se filtrava pelas cortinas. Tudo parecia igual...
-Eu... Sonhei? Não, não é possível - murmurou, confuso.
Levantou-se e seus joelhos dobraram. Traidores! Teve de apoiar-se no criado-mudo para levantar e cambaleou porta afora.
A porta estava aberta, sim, ele notou. Assim como notou que aquelas não eram as roupas do jantar de noivado... E notou o silêncio morto sobre a Quinta, pontuado por murmúrios fantasmagóricos que só ele ouvia - como sempre havia ouvido, desde que era criança.
Desceu as escadas com cuidado extra, e encontrou a sala de jantar com as portas cerradas, e a porta de entrada da casa, entreaberta.
A brisa fresca trazia o cheiro de árvores, mato e fumaça. Ele seguiu adiante, ouvindo vozes vivas há alguns passos dali, à sua esquerda.
Encontrou duas figuras ali, conversando normalmente, as vozes cheias de perda e revolta:
-Alguém aprontou pra gente, eu sei - disse a primeira moça, vagamente familiar - Alguém ficou de olho, alguém queria nos vitimar, nos destruir!
-Eu sei - a outra respondeu, a voz carregada de culpa - Eu posso até dizer que tipo de alcateia teria essas intenções, mas não os colhões. Eu perdi tudo ontem, Nicole.
-Você ainda tem eu e a Raquel. Nós não podemos ser as únicas vivas também. Tem que ter mais gente viva, Lu...
Os cabelos muito cacheados de Lucine formavam um halo ao redor de sua cabeça, brilhando um tom mais claros quando o sol incidia sobre eles.
-Muito cedo para dizer qualquer coisa - ela falou, em tom definitivo - Eu estou muito cansada para pensar nisso agora.
Nicole assentiu, olhando para a pira quase completamente que ainda queimava, seu irmão e muitos dos que um dia conhecera ali. Para sempre.
-Lucine - a voz fez com que ambas se virassem para ver Bernardo.
Lucine virou-se agilmente, caminhando em sua direção sem falsear, com energia tal que parecia a ponto de abraçá-lo. Deteve-se muito antes e permaneceu silenciosa diante dele.
-Lucine, meu Deus - ele murmurou, a voz entrecortada, um passo mais próxima - Meu Deus, o que houve?
-Bê, há coisas sobre nós que não podemos escolher. Eu não escolhi ser uma loba, mas é assim que minha família é há gerações. Eu não escolhi reuni-los aqui para uma armadilha que os dizimaria... Mas as coisas são o que são. Ninguém aqui vai te fazer mal e eu prometo que, depois que você estiver em casa, nunca mais vai me ver - dizia, terminando de puxar o anel de noivado do dedo e estendendo-o diante de si, entre eles.
Seu coração pesou quando sentiu-o pegar o pequeno objeto de suas mãos. Ela sabia que nada construído sobre omissão e mentira duraria, e o mundo lhe mostrava aquilo com dureza sádica.
-Lu, eu não quero não te ver - falou, tomando as mãos dela entre as dele - Não me afaste, por favor, eu quero ficar com você.
-O quê?
-Quieta, Nicole - ela rebateu, antes de erguer as mãos em busca da testa de Bernardo - Você está delirando?!
Ele guiou suas mãos até seu rosto, aproximando-se mais.
-Eu ouço gente morta, e não raro, eu sou assediado por esses sem-noção. Lu, eu não vou correr de você... Você nunca fugiu de mim por causa desse lance com os fantasmas, eu também não vou. Acho que somos adoráveis, inclusive. Tipo Família Addams... Sem ofensa!
Ela riu e deu de ombros. O som do riso era algo ambíguo, preso entre uma dor muito grande e o alívio.
-Eu não quero que você se machuque - murmurou - Eu não quero ter que te enterrar ou ter você me enterrando ainda tão jovens como somos... Eu não quero...
-Se você quiser, eu vou embora, mas só se você quiser. Eu não vou te deixar por medo - ele falou, devolvendo o anel de noivado ao dedo anelar da noiva - Eu não tenho medo disso, ou de qualquer coisa que venha pra cima da gente, porque eu te amo e não é simples ficar com alguém, eu não vou desistir só porque é difícil. Mesmo que te amar seja como estar em um campo de batalha, eu não me arrependeria nem um dia.
Ela parou, bastante emocionada, mas a resposta foi longe de algo romântico, uma tentativa quase tola de se proteger com sarcasmo:
-Não tem medo de nada, é? Seja mais prudente, agradecida.
Ele riu, sem jeito.
-Você ainda vai me levar com você?
Lucine aproximou-se mais e, envolvendo-o pelo tronco, beijou seus lábios suavemente.
-Sem mais segredos vitais, eu prometo.
-Eu posso lidar com os segredinhos, então... Que bom, eu acho - ele balbuciou - Eu te amo, Lu.
Ela sorriu suavemente, a sombra da loba castanha ainda pairava em suas feições.
-Eu também te amo, Bê. Seja bem-vindo à família - disse, com doçura e amargura ao mesmo tempo.
E foi isso! Finalmente!
Bom, feedback é vital e muito, muito apreciado!
Espero que vocês tenham curtido o Bruxas e, bom, nos vemos ano que vem?
Who knows really?